O HOMEM QUE TINHA UM PEIXE ENTRE AS PERNAS

CONTO DE JOYCE CAVALCCANTE

Para Alba Carvalho,
de quem me apropriei
do nome e da amizade.

— Ei. N?o fa?a sombra. N?o tape meu sol, por favor. — Disse. E era voz de mulher, da mesma mulher que ainda há pouco considerava a possibilidade de ser cega.

— E ele disse que n?o. Que n?o carregava muié pro mar — explicou, bem emburrada, imitando o falar do referido Zequinha.

— E quem é você? — ela indagou àquele metido.

— O meu é Alba.

Até aposto que est?o fu?ando minha vida. Fui o assunto da semana nesta vila de pescadores. Eles s?o t?o engra?ados. S?o t?o diferentes do pessoal que eu conhe?o, julgou a mo?a. Ele foi se sentando. A areia, afinal, era pública. Abancou-se bem pertinho, querendo se chegar, já todo cheio das afinidades, já puxando conversa, já íntimo. Era doidinho para experimentar uma turista como aquela, uma dessas que aparecem de vez em quando pela vila. Todas muito formosas, vindas das cidades grandes. Se um dia conseguisse namorar com uma, ia ser t?o bom. Ulysse Nardin replica watches

Ela ouvia com paciência, sem prestar muita aten??o. Ali estava o primeiro nativo com quem travava amizade, e travar amizades era seu desejo. Tinha vindo para aquela vila com a esperan?a de conhecer gente despoluída, simples, quem sabe até um homem novo, puro, diferente dos outros que conhecera até o momento e que lhes davam enj?o. Alguém especial para lhe dar sentido à vida; sonho secreto que n?o larga as mulheres; a eterna persegui??o da aventura do amor romantico.

Humberto passou a ser como se fosse sua sombra. Achava que ela era um peda?o de mau caminho. Ah, quem dera, planejava entre suspiros, seguindo-a por todos os lugares do vilarejo, deixando seus quefazeres de lado.

Andava léguas para n?o deixar faltar alface e tomate na salada que ela tanto prezava. Quando um siri vinha enganchado em alguma rede era imediatamente separado para que ele pudesse presenteá-la. (O pessoal da capital dá o maior valor a carne de siri). Cajus maduros encontrados pelas estradas em que passeavam durante o dia, eram transportados aos pedacinhos, pelos dedos dele para a boca vermelha que ela usava sempre. N?o dispensava em hora nenhuma o batom escuro e provocante.

A noite, eles iam para o bar do Mamede. Ela ficava deitada na rede de corda armada no terra?o, e ele escanchado numa cadeira, de frente pra ela, encantado; se gabando, se gabando, ou tocando viol?o. Caboclo matreiro aquele. De madrugada, sem que ninguém visse, ele colhia ramalhetes de bogaris e os depositava na porta do chalé onde ela dormia hospedada. O mar era muito escuro nessas horas.

A claridade fazia com que ela acordasse às seis da manh?. Havia em seu quarto uma janela que n?o fechava direito, impedindo que a penumbra fizesse a noite durar um pouco mais. Aproveitava para dar longos passeios, esticar-se, respirar o iodo vindo do sal. Ouvir o som do mar constante. Ao seu lado Humberto, constante também.

— Olha lá uma jangada chegando. Já sei reconhecer. é a do teu pai — comentou Alba, apontando o infinito.

— Hoje eu te levo pra dar uma volta. Ouvi dizer que ele vai pra cidade. Assim que o velho der as costas a gente vai.

— Por que o Zequinha n?o gosta de mim, hem?

— Né isso n?o, minha filha. Né isso n?o. Ele gosta sim.

— Ent?o por que ele n?o me deixa passear na jangada dele? — Quer saber por quê? Nem ele nem nenhum pescador leva mulher pro mar.

— Mas por quê?

— Quer ver pergunte aos outros se eles te levam. N?o é só o pai Zequinha n?o. Ninguém vai te levar.

— Mas por quê? Eu pago. Eu disse que pago. Pode dizer o pre?o.

— Num é quest?o de pre?o, n?o.

— E o que é?

— Besteira de gente ignorante. Num liga n?o. Fa?a o que eu digo: n?o se preocupe que eu te levo. Mas num fala nada pros outros. Um dia eu te levo — prometia.

Ela já tinha sofrido várias recusas. Esse jovem pescador era sua última expectativa. Passear numa jangada lhe parecia uma coisa t?o simples. N?o entendia por que punham tanta dificuldade.Richard Mille Replica

Nadavam furando as ondas, cedo, muito cedinho, mas com calor suficiente para que suor e água salgada se misturassem sobre a pele. Ele ia aos abismos do oceano buscar- lhe corais, estrelas-do-mar, conchas e madrepérolas. Aceitava todos os desafios para deixá-la alegre. Brincavam na água azul-turquesa como talvez tivessem brincado os primitivos. E era tanta coisa linda que nem dá pra tudo contar.

Certa vez inventaram de pescar lagostins nas locas deixadas à vista pela maré vazante. Arrancaram-nos de seus esconderijos com as m?os nuas e por isso os dedos t?o lindos dela ficaram sangrando. Ele, com olhos de desejos múltiplos, lambeu-lhe o sangue com luxúria, e foi agora, neste momento, que pela primeira vez mergulharam-se dentro dos olhos, no fundo das pupilas, dizendo o nada que diz tudo.

— Vamos até a pousada. Vou cozinhar os lagostins só no bafo da panela — disse Alba desfazendo o clima.

Na pousada n?o a deixaram preparar aqueles frutos deliciosos que o mar nos dá. Sua pesca estava proibida. Era época de desova. Se a fiscaliza??o pegasse, além de fechar o estabelecimento, aplicaria uma multa. E a multa custava uma fortuna.

— N?o é nada disso. é pura implicancia dessa negrinha nojenta, essa tal de Teca. Ela pensa que é importante só porque arrumou esse emprego de cozinheira nessa titica de pousada. Num ligue n?o, minha bichinha — pedia o mo?o carinhosamente — vamos lá pra casa. A gente cozinha lá. M?e Maria num há de se incomodar, n?o.

— A Teca foi sua namorada? — perguntou Alba com ódio.

— Foi. Gra?as a Deus num é mais. A gente namorava antes de você aportar por aqui.

— Puxa-saco. Enxerida.

— é isso mesmo. Ela fez isso pra puxar o saco do patr?o. Tá bem dormindo com ele — disse Humberto, demonstrando ainda uma lasca de ciúmes por Teca.

— Que dormindo com ele que nada. Eu conhe?o o patr?o dela, o Otávio, que é o dono da pousada. Ora se ele haveria de querer aquilo. Ela quer é implicar comigo por causa de você — garantiu enciumada, tentando desvalorizar a cozinheira. — Sempre que pode ela me persegue. Vou dar queixa dela.

— Ligue n?o. Vá se queixar n?o. Ela é uma pobre coitada e precisa desse emprego — pediu, mudando de idéia, resolvendo proteger sua antiga namorada. — Afinal de contas, tem tanta coisa muito mais bacana pra se fazer — argumentou o rapaz.

Bebês de lagostins cozidos no bafo da panela com casca e tudo. Depois, pra comer, é só tirar a carne de dentro da casca e molhar na manteiga derretida. Iguaria para se saborear de joelhos.

Trepou no coqueiro levando o fac?o entre os dentes. Era só ela querer água de coco, ou qualquer outra coisa, para que ele fosse buscar.

— Cuidado Beto. N?o vá cair daí, pelo amor de Deus — gritou Alba, olhando para cima, encandeada pelo sol.

— Ai vai. Agora o nome dele é Beto? — perguntou com ironia m?e Maria. E gritando para o filho: — Ei, Humberto. Teu nome agora é Beto? Num foi assim que o padre te batizou, n?o.

Noite dessas, depois da cachacinha pra dar quebranto, foram dar umas voltas por detrás do cemitério. Quase louco, ele a imobilizou com o próprio corpo amassando seu corpo fêmeo contra o muro. Perfume de jasmins. Cheirava seu cangote afogando-se lá, enquanto ela sentia a rigidez máscula encostando-se nas suas coxas, esfregando-se. Com impaciência levantou-lhe a saia e já estava quase conseguindo. Porém ela escapou no exato momento em que ele afrouxou o abra?o para desabotoar-se. Aconselhada pelo diabo que morava em si, fugiu correndo para o chalé e se trancou. Ele n?o conseguiu alcan?á-la, passando a noite inteira gemendo, implorando ao pé da porta. E ela nada:

— Por favor minha querida. Por caridade. Abra a porta. Abra. Vamos. Abra essa porta, minha bichinha. Num tem ninguém aqui. Ninguém vai saber.

Mas no dia seguinte todo mundo soube. Todo mundo olhava pra ele com cara de riso, até a Teca.

Esse episódio, em vez de irritá-lo, fez com que se tornasse ainda mais perseverante, mais atencioso e mais apaixonado. N?o há quem explique essas coisas do amor. Dali em diante as vontades dela eram satisfeitas antes mesmo de serem manifestadas, aquela coisa de adivinhar pensamentos. Só n?o tinha conseguido ainda andar de jangada.

— Por que você n?o me leva hoje? A jangada está parada ali. Veja.

— O pai está de olho na gente. Noutro dia ele tava dizendo pra m?e que num ia pra cidade, como estava querendo, pra evitar que eu fizesse uma desgra?a.

— Desgra?a? Por que desgra?a? Você sabe ou n?o sabe conduzir uma jangada?

— Sei. Sei sim e muito bem. Pode perguntar a qualquer pessoa. Mas aqui, eles acreditam que levar mulher pro mar dá em desgra?a. Coisa de gente iletrada — explicou- lhe cheio de orgulho por ser um dos poucos com estudos naquela vila de pescadores dos confins do mundo.

— Mas eu quero ir. Num ligo pra essas cren?as. — Desafiou enquanto Humberto a agarrava pelas costas. As m?os dele colhendo-lhe um dos seios alojado dentro do suti?.

Ela passava o dia inteiro em trajes de banho. Algumas vezes apenas amarrava um pano colorido na cinturinha fina, bem-feita. Talvez fosse por isso que o corpo do rapaz n?o se comportasse direito dentro do cal??o. Seu sexo pulava a toda hora para fora da roupa, assim como um peixe vivo pula para fora da rede.

Foi m?e Maria, com voz amea?adora, quem contou claramente para Alba, que todos os pescadores dali faziam um voto pra Janaína, a poderosa deusa do mar e dos cora??es, de n?o carregarem outra mulher dentro de suas jangadas a n?o ser ela própria, figurada por uma imagem de madeira pregada no meio do mastro.

— Ela se vinga de quem quebra o voto, levando o maldito pro fundo do mar.

Dali em diante ela come?ou a observar melhor o ícone encravado nos mastros, e a entender dos mistérios daquele mundo t?o masculino. Apesar disso n?o se conformou aumentando a press?o sobre o namorado, deixando bem claro que só aconteceria o que ele tanto desejava se ele a levasse ao mar numa jangada. Empurraria o pobrezinho à loucura, mas n?o cederia. Jogo delicioso é entrar nesse limite. Momento de incomparável poder é quando os homens fazem qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, para entran?ar seu corpo no corpo de uma mulher, e quando essa mulher é a gente.

Criou a moda de colher ostras para comer. Ela as apreciava vivas apenas temperadas com suco de lim?o bravo. Ensinou a crian?ada da vila a despregá-las das rochas usando uma faca velha, pois embora aquela praia fosse lotada de ostras, eles n?o costumavam comê-las, nem vendê-las, nem nada. Gastou tardes e tardes nessa lida deixando Humberto enciumado e impaciente. Sobrava para ele apenas o aproveitar-se de uma ou outra distra??o dos curiosos para poder, por baixo d'água, meter a m?o por dentro da calcinha do biquíni, excitando-a. Ela estremecia, mas n?o deixava que ele notasse só para atormentá-lo. O coitado ficava todo inflamado. Estava quase alucinando, até chegando uma vez a relinchar como um jumento, tal era seu estado de paix?o. O sol era quente de arder sob as costas. O mar era de uma beleza superior.

Tinha que acontecer, repetia-se Humberto. Tinha que acontecer. A vida exigia. Onde punha sua boca sentia o gosto dela, onde punha seu nariz sentia seu perfume. Sonhava com ela em seus bra?os, linda, vindo toda apaixonada. Depois, tinha certeza, ela nunca mais ia querer fazer outra coisa na vida.

Rindo, enquanto ele a espremia num abra?o, ela pedia provocante.

— Me leva pra passear de jangada, amor. Daí nós vamos fazer tudo que você quer. Com o sol por cima e o mar por baixo.

— Levo — dizia entre beijos na boca.

— Quando? — perguntou, empurrando-o.

— Amanh? — decidiu, iniciando outro beijo, tentando provar o veneno da saliva daquela mulher que o obcecava.

Acordaram ainda de madrugada para aproveitar a vazante da maré e saíram a pé atravessando a água salobra das diversas barras dos rios que convergiam para o mar. Os galos cantavam.

Dirigiam-se a um outro vilarejo onde morava um tio de Humberto, também pescador. Ia ver se conseguia pegá-lo desprevenido. Ia ver se conseguia roubar a jangada dele. Faria qualquer negócio para satisfazer o principal desejo dela, e, enfim, satisfazer seu principal desejo, pois os dois desejos interdependiam. Estava t?o feliz que cantava, corria e chapinhava na espuma retida pela areia.

N?o foi difícil rolar a embarca??o para as águas que come?avam agora a subir. Era a hora da maré encher. Quando passaram a arrebenta??o das ondas, o sol já clareava o mundo. Finalmente alcan?aram a solidez do alto-mar.

Janaína, fixada no mastro, o olhava com as sobrancelhas afiadas. Ele fez uma silenciosa ora??o à deusa, fixou o leme com uma corda para melhor se dedicar aos dengos do amor e jogou as roupas pra dentro do samburá. Vestindo apenas o sol por cima e o mar por baixo, conforme a proposta, exibia-se nu ante o espanto quase infantil daquela mulher t?o cobi?ada.

— é enorme. Parece um peixe. Um enorme peixe. é liso, rijo, indomável e vivinho como um peixe.

— O peixe quer o mar — segredava rouco, bulindo com o corpo também nu que ela lhe apresentava.

E olhava fascinado para seu próprio sexo. Segurava orgulhoso as dimens?es que a natureza havia lhe dado, como um rei empunha um cetro, o símbolo do poder sobre os outros mortais. Sorria.

Satisfizeram com requinte a todas as exigências da natureza, repetindo esse ritual por um inteiro dia.

— O peixe quer voltar para o oceano, sen?o morre — pedia, come?ando tudo novamente.

— N?o posso mais. Assim você vai me machucar. Por favor, cuidado — queixava-se ela, embora permitindo sempre o retorno.

O sol já estava se pondo quando voltaram. A praia estava lotada de gente, porém ninguém disse nada. Ao verem os dois saltarem da embarca??o s?os e salvos, se retiraram silenciosos, n?o restando uma viva alma para ajudá-lo a recolocar a embarca??o no seco, aquele árdua tarefa de rolar a jangada sobre dois troncos de coqueiro.

Muito mais tarde da noite ele voltou para casa. M?e Maria,Swiss Replica Watches mal o avistou já foi chorando e se lamentando. Pai Zequinha, mal conseguindo se controlar disse entredentes:

— Você pra mim já está morto. Ela vai te levar, eu sei — e sem mais poder se conter, chorou também.

Dia seguinte, quando clareou, Humberto viu pai Zequinha se preparando para ir pescar. N?o queria acompanhá-lo. Queria Alba. Mas, mesmo contra seu desejo, resolveu obedecer ao destino. Quem sabe assim o amansaria?

Come?ou a ajudar, foi fazendo as arruma??es, mostrando atitude de quem vai. Zequinha, foi aos poucos relaxando a cara de aborrecimento, porém só falando o indispensável. Dava as ordens pois era o mestre. Juntos pai e filho partiram:

Rumo a um horizonte de encantamentos, e rumo ao descanso nos bra?os da mulher que acreditavam ser única com poder de acompanhar um homem ao mar. Janaína, a que tinha lhes colocado um peixe entre as pernas.

Copyright © by Joyce Cavalccante








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