O CÃO CHUPANDO MANGA Ninguém deixa de chegar ao pra onde se está indo. Guardando essa crença no coração Zezito desceu do ônibus para esticar as canelas que, ou curtas ou não, há dezoito anos o levavam aonde cismava de ir.
O motorista suado trocava um pneu murcho em silêncio e os passageiros esticavam o pescoço pra fora das janelas, tentando ver que arrumação era aquela. O sol já estava indo embora, o que significava que chegariam no escuro e ele ainda teria de arranjar um lugar pra dormir. Dava até vontade de perguntar a alguém, pedir um palpite sobre um canto pra passar a noite, porém não ia fazer aquilo não. Falar, quanto menos melhor.
Sorriu. Em boca fechada não entra mosca, era como dizia sempre o Compadre. Ele sim, sabia das coisas. Sorriu outra vez se lembrando do Compadre, e voltou para seu lugar. Esperou pensando, pensando, fazendo seus planos. O motorista entrou e deu a partida enquanto ele continuou matutando, decidindo o que fazer de si naquela sua primeira noite da vida em São Paulo.
A medida em que a claridade das luzes ia aumentando, ia aumentando também seu entusiasmo. Curioso, olhava tentando enxergar o que podia. Era muita gente. Era muito frio. Era muito tudo. - Ô cidade pai d'égua - pensou.
O colorido do teto de acrílico da estação rodoviária era de fascinar. Se viu quase tonto, achando tudo de uma boniteza só. Se dependesse dele ficaria ali olhando pra cima a noite inteira, ou então, olhando o vai e vem daquele povaréu. A cidade era grande. Todo mundo tinha avisado. Mas não imaginava que fosse tão grande desse jeito.
Agarrou sua sacola e foi andando a pé, a procura de um paradeiro. Preferia pernoitar por ali perto mesmo. Entrou em vários hotéis perguntando o preço, mas cada qual que fosse mais caro do que o outro. Povo ladrão, concluiu. Andou, andou, andou e voltou para a rodoviária outra vez. Atraído, decidiu dormir ali mesmo sentado num dos bancos. Mas quando escolheu um banco viu um guarda passando. Amedrontou-se. Os homens da lei não eram seu forte. Não que estivesse devendo alguma coisa, mas é que eles sempre acham um motivo pra fazer um sujeito pobre como ele se entender com a dona Justa. Saiu andando outra vez e descobriu um alojamento esquisito. Era mais um hotel aquilo ali bem ao lado da rodoviária, o qual não tinha notado antes porque nem placa tinha. Indagou o preço e achou satisfatório, pois era bem mais barato do que os outros. Não fez muitas perguntas pagando adiantado, cumprindo uma exigência da casa. Seguiu o moço da portaria.
O tal moço, usando uma calça brilhando de sebo e fedendo a suor azedo, acendeu a lanterna que carregava pendurada no pescoço, abriu uma porta larga e fez sinal para que ele não fizesse barulho. Ao olhar para dentro do quarto, Zezito recuou perguntando: best replica watches
- Que marmota é essa?
O moço fez um sinal exagerado para que ele ficasse em silêncio e deu de sussurrar em seu ouvido com voz de bem-me-quer:
- Aqui é o hotel da corda, nunca ouviu falar?
- Inda não - respondeu Zezito, espantado com o que via.
- O negócio aqui, meu bem, é sentar, segurar na corda e se entregar. Ao sono, claro - explicou o empregado cheio de requebros.
Mesmo estando escuro, Zezito olhou para seu interlocutor com modo atravessado, achando: - Esse daí é baitola. Ulysse Nardin replica watches
Morto de cansado, entrou e sentou no lugar indicado pelo facho de luz da lanterna. Ficou tentando entender onde estava. Quando se acostumou à escuridão, percebeu que estava num quarto enorme que mais se parecia um galpão. Ao longo das quatro paredes tinha um banco feito como se fosse uma prateleira, onde sentadas, dormiam e roncavam criaturas agarradas a uma corda para manter o equilíbrio. Era o famoso Hotel da Corda, a respeito do qual muita gente nunca ouviu falar.
Achou que não iria conseguir dormir, mas sua juventude falou mais alto e, apesar dos gemidos produzidos por um casal se engalfinhando, a despeito do choro e da tosse de uma criança com coqueluche, e mesmo com um cheiro horrível impregnando suas narinas, agarrou na corda, cabeceou a noite inteira, mas dormiu. Acordou com o mesmo empregado da véspera batendo sutilmente na sua coxa esquerda. O galpão agora estava vazio e silencioso e era maior e mais emporcalhado do que Zezito tinha suposto.
Sobressaltado, deu um chega pra lá no empregado. Pegou suas coisas e saiu penteando o cabelo com os dedos, indo se apossar da cidade grande, decidindo em si mesmo que era ali onde iria construir de um por um todos os seus sonhos, principalmente o sonho de um dia poder chegar no Ceará distribuindo notas de mil para todo mundo. E quando fizesse isso, haveria de ver o Compadre se rindo e contando pra todo mundo nas bodegas que ele, depois de ter passado baixo na cidade grande, depois de ter dormido até no miserável Hotel da Corda, tinha vencido e voltava agora rico.
É em São Paulo que as coisas acontecem.
Como já tinha batido oito horas da manhã, achou que poderia ligar para o João Maria que tinha mudado de vida, diziam, e agora trabalhava numa borracharia. Conseguira esse número de telefone com dificuldade, ainda em Brasília. Ninguém parecia disposto a informar, talvez porque desconfiavam de suas intenções de se mudar pra São Paulo. Reconhecia ser muito chato chegar num lugar e se escorar nos outros, mas era preciso.
João Maria era um companheiro antigo. Tinham saído de poucas e boas juntos, quando, salpicados de cimento, iam beber e fazer arruaça no Bar do Bode, lá em Anápolis, onde moraram enquanto construíam a tal da tão falada Brasília. O João era um tipo boa-pinta que sempre se deu bem com as mulheres. Um monte delas vivia atrás dele e ele só botando as pobrezinhas pra trabalhar e tomando o dinheiro delas:
- É preciso ser cruel, senão não se consegue nada com essas vadias - ensinava aos companheiros.
Viveu desse jeito o tempo todo. Trabalhava de servente de pedreiro, só pra dizer que trabalhava. Só pra ter carteira assinada e assim se livrar das perguntas da polícia, se justificava; e afirmava que ganhar a vida mesmo ele ganhava com sua lindeza, com seu topete louro, com seu jeito manhoso de gato angorá. Quem nasce bonito é dono do mundo, acreditam os feios. E Zezito era um deles. Um feio. Um muito feio. A cabeça dando impressão de coisa triangular era desproporcionalmente grande para o corpo baixo, mirrado e moreno, que sustentado por um par de pernas finas, por muito tempo lhe valeu o apelido de Caixa-d'água.
Teve sorte. O João topou conversar:
- Vem pra cá, Caixa-d'água. Tô te esperando. Anota aí o endereço. É em Guarulhos.
- Onde fica isso?
- Te vira. Vai perguntando. Começa pegando um ônibus lá na Praça da República.
- Custou mas chegou - foi o que comentaram quando finalmente ele apareceu com suas trouxas.
João estava, como sempre, arrodeado de mulheres. Depois do almoço e muita cerveja, quando todos já se encontravam cheios de valentia, João puxou Zezito num canto e ordenou como costumava ordenar as suas mulheres:
- De amanhã em diante, você vai me substituir lá na borracharia onde eu trabalho. Vou tirar um descanso. Quero uma folga pra resolver uns negócios.
Zezito ficou feliz, mas nem por isso sorriu ou deixou transparecer. Arranjar um emprego já assim no dia seguinte da chegada era uma barbada. Estava topado. Dormiu lá mesmo na casa do João que era pra acordarem cedinho e irem juntos falar com o patrão sobre o arranjo.
Dinhão, o patrão, era já velhusco. Era do interior do estado e falava com o sotaque carregado nos erres. Às vezes Zezito tinha até dificuldades de entendê-lo. No mais, se deram bem. Ficou acertado tudo naquela manhã e foi aqui que Zezito notou que quando a esmola é muito grande, o cego deve desconfiar. O João Maria nunca foi de ajudar ninguém sem interesse. Loguinho notou que ia servir de laranja para o amigo. Laranja é o cara que dá a cara pra bater para o outro dar uma de bacana. Ou melhor, é um sujeito que faz um serviço dizendo que foi o outro quem fez.
- Você tem que chefiar esse pessoal folgado que trabalha lá, com punho de ferro - recomendou João ao amigo. - Num deixa eles nem chegarem perto da caixa registradora. Só você, entendeu? Só você. Eu vou ficar vindo aqui sempre que der. Vou ficar te ajudando a se ambientar.
Essa ajuda era muito especial. Umas duas vezes por semana, o João passava pela borracharia e raspava o caixa. Levava as contas pra fazer em casa e depois se acertava com o Dinhão que parecia adorá-lo. Com o João acontecia dessas coisa. As pessoas se encantavam com ele.
- E tem mais, ô Caixa-d'água, não registra tudo que pagarem. A cada três freguês você registra um. É assim que o patrão quer que seja, por causa de que tem de sonegar os impostos.
Zezito ia obedecendo que nem mula mansa. Ia sentindo. Ia aprendendo. O serviço não era puxado. Era só pra reparar a borracharia no lugar do João, dar conta do dinheiro, chefiar o pessoal, tratar os fregueses direitinho. Conseguiu pegar rápido a batida. Em pouco tempo já fazia tudo que os outros faziam e até ajudava a pegar no pesado, coisa que o João nunca se deu ao luxo de fazer.
Andou perguntando sobre a possibilidade de ter o registro desse emprego, pra poder provar pra polícia, caso fosse detido, que era um trabalhador. Sobre isso, a princípio, não lhe deram resposta. Insistiu. Daí o João discutiu com ele, alegou que ele estava lá naquele emprego apenas guardando seu lugar caso ele quisesse voltar, e que quem tinha o direito de ter esse registro era ele. Mas, ao final da discussão, João arrefeceu e disse que ia ver o que poderia fazer. Pediu que Zezito lhe entregasse seu documento. Guardou-o e nunca mais tocou no assunto.
Depois de uns seis meses Zezito já pensava em abandonar o emprego. Estava cansado de ser feito de besta. Ia se pirulitar se não tivesse conhecido Manuela e suas possibilidades.
Era ela uma viúva que dizia ter 37 anos. Pintava os cabelos de louro gema-de-ovo, resultando num contraste brutal com a sua pele morena sempre coberta de creme ou maquiagem. Morava pertinho da borracharia e, como se locomovia apenas com seus pés, pois, não tendo carro ou nem mesmo bicicleta, freqüentava lá timidamente sob a desculpa de trocar dinheiro ou pedir uma informação. Na verdade queria olhar pra Zezito e conferir se o olhar enviesado que ele havia dado certo dia em sua direção tinha sido pra acreditar ou pra esquecer. Se mediam. Se experimentavam sem que nenhum tomasse a dianteira, até que ele resolveu convidá-la pra tomar uma cerveja.
Tinha tomado informações sobre quem era ela antes, pois não era homem de se encostar em pé de mandacaru para pernoite. Soube que ela era dona do sobrado onde morava com um filho, um rapaz assim meio prejudicado do juízo. Soube também, e inclusive, que ela tinha pensão gorda do falecido, um português.
Andava mesmo precisado de mulher, pois sem elas, qualquer estória fica sem graça. Fazia um bom tempo que num se metia com uma. Nessa tal de São Paulo esses assuntos dão encrenca. Desde que chegara aqui só tinha andado uma vez com uma das meninas do João, mas mesmo assim pagando, e pagando alto. O sacana nem pra servir ao amigo. Depois se entreteve no trabalho e foi deixando o tempo passar, foi se aborrecendo e já ia dar o pinote pra outras aventuras quando Manuela lhe sorriu.
Ela contou mais tarde que acreditava em destino e que tudo já estava traçado no céu com antecipação:
- Casamento e mortalha no céu se talha, meu amor - disse para ele numa noite, em meio a um momento de extrema paixão.
- Que casamento? Tá ficando doida? Que casamento? - rebateu Zezito, tirando-lhe a graça.
Depois da pequena fase inicial de conquista, quando ele até se esforçou para encantá-la, retornou aos seus costumes rudes. Era como se sentia à vontade. Não tinha se criado e rodado meio mundo para fazer nhém-nhém-nhém pra mulher.
- Conta amor, como foi esse negócio de rodar meio mundo. Eu queria saber tudo sobre você. Conta - pedia a viúva.
- Conto não. Ora se eu sou homem de sair por aí contando minha vida pra qualquer um - rebatia Zezito.
- Mas eu não sou qualquer um - se queixava manhosa, Manuela. Fazia falinha.
- Você se parece com o Compadre. Fica o tempo inteiro pedindo para mim repetir a mesmíssima coisa - resmungava Zezito.
- Ah. O Compadre. Adoro as estórias do Compadre - comentava Manuela, e bastava isso para Zezito desandar a relembrar:
- Cabra macho estava ali. Nunca vi um cabra mais macho na minha vida inteirinha. Foi ele quem praticamente me criou pois desde os seis anos de idade vivi na sombra dele. Foi quem me ensinou a dureza da vida. Sabia de tudo. Entendia de tudo. Meu irmão, Evangelista, veio ao mundo por causa dele. Antes tivesse sido eu.
- Ele era o pai do seu irmão?
- Cê é besta. Minha mãe é mulher séria - disse Zezito quase gritando. - Cê é besta.
- Não precisa se zangar amor - suplicava Manuela ante a ira descomunal do namorado - Só me conte o que aconteceu que é pra mim ficar sabendo.
Depois de um bom silêncio, Zezito esclareceu:
- Na horinha de dar a luz ao Evangelista, minha mãe estava sozinha e abandonada numa cabana imunda. Sozinha mais eu e Deus. Num tinha uma viv'alma que pudesse ajudá-la pois eu nem três anos tinha. Foi quando ela se apegou com a milagrosa cabocla Jurema, que era em quem ela tinha fé, daí a cabocla lhe mandou o Compadre, em nome de Deus, pra lhe assistir na hora de dar a luz. E com o mesmo facão que ele descascava cana, com o mesmo facão que ele furava bucho de nego enxerido, ele cortou a tripa que atava meu irmão na minha mãe. Eu vi tudinho.
Era quando o nordestino destemido baixava a cabeça e chorava. Quando contava essas coisas do passado. As lembranças vinham forte e em desordem. Os fatos se alinhavam como podiam, uns mais próximos à verdade outros à fantasia. Manuela já sabia reconhecer essas reações. Era apaixonada por ele.
O João Maria morria de gozar esse chamego. Achava que só ele próprio era merecedor da atenção de uma mulher. Perguntava por aí como que alguém poderia se apaixonar por uma figura tão horripilante como o Caixa-d'água. Explicava pra todo mundo que ela se engatou nele porque estava ficando velha e não conseguia mais ninguém, enquanto ele se engatou nela só pra tirar casquinha na pensão do falecido:
- Casa, comida quente e um chamego no escuro. Sabe como é, né?
Porém, mesmo desdenhando Manuela, ele andou se botando pra cima dela num dia em que soube da ausência do Zezito. Manhoso como era, chegou pra visitar. Pediu um café e partiu para o ataque sem nem mesmo se certificar se a mulher estava preparada ou não. É por isso que dizem, quem desdenha quer comprar.
Zezito soube desses comentários maldosos de João, mas com a graça de Deus não soube do ataque à Manuela. Só por causa dos comentários aborreceu-se à beça. Passou noites sem dormir xingando o amigo, planejando vingança:
- Num me importo que digam que sou feio. Disso eu sei - resmungava. - Mas ora se eu sou da laia desse rufião salafrário que só quer saber de mulher pra explorar? Ele vai me pagar - ameaçou.
Estava de saco cheio daquele sujeitinho. Mas depois de fazer um escarcéu danado acalmou-se. Com o passar dos dias, parecia que nada tinha acontecido. Ela estranhou. Vá lá entender o que se passa na cabeça dos homens, pensou.
Na borracharia também a mudança de atitude de Zezito foi notada. Passou a ser mais simpático com os seus ajudantes. Incentivava-os constantemente a parar o trabalho pra irem tomar uma cerveja, enquanto ele ficava sozinho para atender os fregueses. Dava bom-dia pra todos, cochichava com um, cochichava com outro e os despachava. Nem parecia o mesmo.
Os dias se foram como é de hábito até se transformarem em meses. Quando se deu o intervalo de tempo necessário para que o Sol, no seu movimento aparente anual, descrevesse 30º de longitude, estourou a confusão. Foi uma briga de feder. O João Maria gritava:
- Ladrão. Ladrão. Vou mandar te prender.
- Pois mande - gritava mais alto ainda o Zezito. - Pois mande. Ande logo. Chame a polícia. Vamos ver quem eles vão levar primeiro.
João Maria, louro almofadinha e magrelo, ainda fez menção de partir pra cima do feioso nordestino. Teve porém de engolir sua raiva no último minuto quando se lembrou de uma cena que assistira em Brasília. O Caixa-d'água era tido como valente e num dava moleza. Lembrou-se de tê-lo visto ameaçar cortar o pescoço de um homem que dava o dobro dele, obrigando o infeliz a ficar ajoelhado enquanto o agarrava pelos cabelos. Lembrou-se até da lâmina nua que o abusado costumava carregar aonde quer que fosse, junto à virilha.
Todo mundo no bairro comentou a briga. Todo mundo ficou sabendo do porquê dos fatos. Manuela também, mas sobre isso não trocou uma palavra com Zezito. Deixou que as coisas corressem como pudessem e tentou compensá-lo da derrota melhorando cada vez mais seu carinho.
Zezito andou enfurecido por um longo amontoado de dias, tratando a todos com a maior estupidez. Mas quem pagou mais o pato foi um filho que a Manuela tinha, o Pitaco. Pobrezinho, deve se lembrar daquela semana como uma das piores de sua vida, pois foi cair na besteira de perguntar pra mãe o que tinha acontecido lá pela borracharia, e a boboca da mãe, esquecida de que o rapaz possuía três quartos do cérebro avariado, caiu na besteira de explicar tudo. Pitaco, que era também gago, então se achou no direito de sair por aí espalhando que a borracharia era do Dinhão, que era rico mas não gostava de trabalhar. Vivia de roubar os impostos do governo. Daí, para que as coisas saíssem direitinho como ele gostava, resolveu arrumar um que trabalhasse na borracharia e roubasse por ele. Esse era o João Maria que também não gostava de trabalhar mas queria ficar por ali pra roubar pro Dinhão e pra roubar do Dinhão também. Mas um dia, o João, que já não era muito disso, cansou-se de trabalhar. Foi por isso que ele botou o Zezito pra dar duro no lugar dele e ensinou o Zezito a roubar do governo para o Dinhão e do Dinhão para ele. O Zezito aprendeu direitinho e fez como lhe mandaram, mas também começou a botar dinheiro no bolso porque ele não era besta nem nada.
Aonde o Pitaco chegava o pessoal ia logo botando o coitado pra repetir a ladainha que ele decorara pra não gaguejar. Todo mundo se divertia aproveitando da ingenuidade do rapaz. Riam-se do jeito dele falar.
- Como foi mesmo, Pitaco? - perguntavam.
Ele não precisava de maior incentivo. Bastava isso pra desandar:
- Lá na Borracharia Santa Esmeralda, o negócio é assim: Um é pro governo. Dois é pro Dinhão. Três é pro João e pro Zezito é um montão. - Assim todos o aplaudiam. Até lhe carregaram nos ombros certa vez.
Pudera. Passou a se sentir como herói. As pessoas olhavam para ele e o cumprimentavam com simpatia lhe pagando guaraná e torresmo. Ele, feliz com a nova condição, não parava mais em casa. Passou a acreditar terem já se acabado os tempos de rejeição, quando os outros meninos não deixavam que ele nem se encostasse na calçada onde estavam reunidos. Acreditava nunca mais ouvir alguém chamá-lo Burro Pelado. Burro Pelado era o apelido que ele trouxera da infância, logo que entrara no colégio e não conseguira aprender a ler, e, como também por volta da mesma época, tinha pegado impetigo no couro cabeludo e por isso tiveram que raspar sua cabeça, passou a ser conhecido como Burro Pelado - apelido renitente que o acompanhou até agora, quando ele já completara dezesseis anos. No seu desejo de ser igual aos outros, delirou achando que, de agora em diante, conseguiria aprender a ler e a contar, coisa da qual já tinha desistido. Andou até contando para Manuela de sua esperança de ganhar um bicicleta.
- Mas quem é que vai te dar uma bicicleta, Pitaco? - perguntou Manuela alarmada ante a seriedade do garoto.
- Seu Lívio disse que dá - respondeu cheio de convicção.
- E a troco de que o Seu Lívio vai te dar uma bicicleta, meu filho?
- Ele disse que é pra mim ficar o dia todo lá na lanchonete fazendo o pessoal rir com a minha prosa. Se eu fizer isso ele me dá.
- Que é que há na tua prosa de tão especial? - perguntou Manuela já se desinteressando pelo assunto, achando que aquilo era mais uma das asneiras do filho.
- Tá todo mundo querendo me ouvir. Tão pagando coxinha, guaraná, chiclete. Tão pagando tudo que eu quiser. Querem que eu conte e aí eu conto - respondeu Pitaco fazendo esforço pra vencer a gagueira. Os olhos brilhando, as faces coradas de excitação.
Foi isso que o denunciou. Foi por esse ar de comigo-ninguém-pode que Manuela foi bater na Lindalva, a lanchonete do Seu Lívio, pra perguntar que armação era aquela.
Seu Lívio tirou o corpo fora. Negou que estivesse iludindo o garoto com a promessa de comprar-lhe uma bicicleta, e nem contou pra ela qual o assunto que fazia Pitaco tão famoso. Copyright © by Joyce Cavalccante [ CELEIRO DE IDÉIAS ] [ ANTOLOGIAS ] [ DE DENTRO PARA FORA ] [ O CÃO CHUPANDO MANGA ] [ O DISCURSO DA MULHER ABSURDA ] [ INIMIGAS ÍNTIMAS ] [ COSTELA DE EVA ] [ RETALHOS MÍSTICOS] [ REBRA ] [ LIVRE & OBJETO ] [ INGLÊS ] [ FRANCÊS ] [ITALIANO ] [ESPANHOL ] [E-BOOKS ] [ ESCREVER ] [ ENCOMENDAR ] |